Gritas.
Apenas gritas para que o eco
Te devolva o que sobra de ti, o teu grito.
Deixas-te cair na terra seca,
no sopé da tua montanha de sempre que conheces de cor.
O teu grito feito pedra,
na ascenção e na queda.
Morres, Sísifo.
Deixas-te exaurir nesse grito sem retorno.
É tarde agora.
Tudo repousa, menos tu, entregue e vencido.
Ao longe, os que esperavam o teu último suspiro, voam em círculos por sobre o teu grito.
Gritas apenas para redimir a tua dignidade.
Que a terra se encarregue de ti, lentamente.
Que o esquecimento te devolva ao pó.
A carne rasga-se, com lâmina afiada,
com dentes de animal feroz.
A dor adormece-se na noite, lambendo as feridas
ferozmente.
Em breve nascerá um novo dia,
de sol fulgurante e tudo o resto.
Ignora-o. Nasceste à noite.
Mata-lhe a sede e a fome
com uma fogueira onde se consuma o mal que te rodeia,
animal feroz sem presa nem caçador.

Do alto da árvore em que repousas
os teus ossos cansados, verás tudo em paz.
As cicatrizes contarão a tua história áspera de animal feroz
cansado. Inspira. Expira. Estás vivo. Adormece agora.
Ignora-me. Não tentes interagir comigo. Ignora-me ostensivamente porque assim és honesta, não necessitas fingir amor subentendido. Os subentendidos matam, os implícitos corroem, a vida faz-se a sangue quente e aço fundido e nada disto eu quero que esteja subentendido num amor que é paciente e tudo oculta, como se perdoasse. Ignora-me e verás que ganharemos com isso. Com isso e com o ópio que é esta nossa vida de consensos. Se pudesse, ignorar-te-ia também. Sabes disso e é essa a tua garantia, a tua certeza de que irei sempre comer e beber à tua mão, sedento e faminto.

quase profecia

Chegará um dia em que não sentiremos medo. Ele fará parte de nós, conviverá como o lobo que encontrou o seu lugar entre as ovelhas. Nesse dia, seremos todos menos dignos, teremos perdido a batalha, as batalhas todas, dilapidados da mais íntima reserva de humanidade. Nesse dia, sobrarão palavras e morfina alguma poderá calar a dor.
Que não se cumpra a profecia.
Queria hoje largar tudo o que me tolhe os sentidos e me faz perder o vibrante das cores, a vida sem filtros nem dormência, o medo atirado aos infernos, a angústia afogada sem redenção. Adormeço. Talvez não seja mau de todo se fechar os olhos e sonhar com tudo isto, ainda que por umas horas.
Se soubesses que, do outro lado, não importa bem de quê, estaria algum conforto, nem hesitarias. Foi Natal e nada se alterou. Ficou o desejo insatisfeito, a dor por suportar, o convite à desistência. Tu sabes que não és o mesmo. Sabes que tiveste de resistir e que tiveste de ouvir falar de paz e amor no mundo, que o Cristo terá trazido, quando ele próprio não precisaria de ser Deus para ver a falácia de tudo isso. Amor transmutado em luzinhas e presentes caros, tudo aquilo que o Cristo não faria, muito menos num Natal qualquer. Sobrevives porque sabes que, do lado de cá, haverá sempre algo que te tomará nos braços e te ajudará a adormecer, ainda que saibas que será provisório. Talvez as palavras, talvez estas palavras atiradas a um qualquer muro, ao teu, talvez.
Dorme em paz, onde quer que o faças. Esperaremos juntos pelos Magos do nosso Oriente, seja onde for.
Passo a passo, sabes que chegou a hora. Sabes que está à solta o lobo que te persegue na tua floresta, no teu sono. Sabes que não podes fazer muito mais para o enganar. Corres para enganar esse teu desejo de morte, da tua morte, corres sem que possas ver o caminho que trilhas. Soltaste a tua vida, deixaste que ela fosse a tua sombra mais escura. Corres, talvez em círculos, traçando uma espiral que te envolve, que não controlas e que acabará por consumir. Podias ter sido outro. Podias ter-te libertado sem dor. Agora resta o que resta e o que resta pode ser pouco mais que nada. Adormece.
Corre a vida em ti, morna, espessa. Abres-lhe a porta para que possa fluir. Deixas-te arrefecer na entrega, deixas que te tome o frio e te envolva, te tome nos braços como a um amante, sem concessões. Deixas que isso seja algo como ser feliz e fechas os olhos, lentamente. Ouves ao longe um murmúrio tranquilo, uma voz familiar. Hoje adormeces em paz.
Fala-me da tua dor, transfere-a para mim.
Injecta-me o veneno que te torna os dias negros, os olhos baços, os lábios ácidos e ressequidos.
Deixa que nos possamos diluir um no outro.
Sabe-me a boca a sangue. Sabe o meu corpo a um sangue talvez desejoso de sair, de se libertar de mim, de correr livre, sem me ter por aliado, ou inimigo ou nada.
Paira no ar um odor intenso a insanidade, 0 meu odor, talvez. Sinto-me insuportável, desesperantemente insuportável, terrivelmente preso num cofre de chumbo, selado, a caminho do fundo de um qualquer lago, de um esquecimento feroz. Terra pesada, esquecimento feroz, sangue espesso, livre.
Paira no ar um esquecimento, uma perda de toda a memória. Hoje, faltei ao chamamento. Mais uma página de paz.

Como morfina

O dia nasce e, com ele, a mesma dormência do ser,
Como ontem, como no dia anterior,
A mesma sede de dormir,
De tornar mais leve o abrir dos olhos.

Pouco a pouco, até a luz é suportável.
Como morfina, as palavras percorrem-me o sangue
Ocultando a dor.
E, a cada dia, mais palavras são precisas,
Como morfina,
Até que todas as palavras me consumam
E me soprem vida.
Um dia após o outro,
Sempre menos eu,
Mais as palavras.